Pensar, propor, fazer

Habitualmente o trabalho do arquiteto é executado sob demanda: há uma necessidade construtiva e o arquiteto é chamado. Com a incorporação da profissão de urbanista às suas atribuições, outra realidade vem à tona: a cidade. Diferente de um edifício autônomo, a cidade é um organismo dinâmico e suas necessidades, numerosas e complexas. Nem sempre tais necessidades são claras o suficiente para serem identificadas pelo poder público e os urbanistas se tornam parceiros indispensáveis. Mais do que agentes puramente passivos, seu papel é apontar os potenciais que uma cidade guarda e imaginar soluções para as questões colocadas por este organismo em constante mutação.

Belo Horizonte, 1951. Assumindo o Governo do Estado, Juscelino Kubitschek tem em mente um grande empreendimento. A tarefa de projetá-lo é colocada a cargo do arquiteto Oscar Niemeyer.

“(…) O Conjunto caracterizará a silhueta da cidade e já se prediz que constituirá ele, na imprensa e na tradição oral, a ‘marca registrada’ de Belo Horizonte, ou seja, o que é a Torre Eiffel para Paris ou o Rockefeller Center para Nova York”.
Juscelino Kubitschek de Oliveira
Tribuna de Minas, 1952

O Governo do Estado, avalista moral do empreendimento, planeja edificar um imenso complexo de uso misto, com diversos tipos de habitação e várias opções de lazer e serviços, apto a receber um por cento da população de Belo Horizonte à época. O megaedifício levaria o nome de Juscelino e deveria se tornar um monumento mundial, como feito antes com a Pampulha e posteriormente com Brasília. O empreendimento é lançado e seu prazo de conclusão previsto para 5 anos.

“Algo que ficará como um dos marcos definitivos de Belo Horizonte, singularizando-a entre tôdas as cidades da América do Sul, eis o que será o Conjunto Governador Kubitschek, erguido na Praça Raul Soares, dentro de um espírito novo, que consiste em colocar o bem-estar ao alcance de todos, uma verdadeira coletivização do confôrto.

Esta obra monumental, que será a grande característica da cidade, distingue-se, inicialmente, pelo arrôjo, pela beleza, pela imponência de suas linhas arquitetônicas. Será uma das realizações mais fortes da moderna arquitetura brasileira, hoje tida, em todo o mundo, como padrão a seguir, como escola a parte, pela ousadia de suas concepções, pelo seu inteligente caráter funcional.

(…) Por outro lado, a vida social do Conjunto será animada por outros fatores. No primeiro pavimento estará aberto ao público um Museu de Arte (…) que será a séde possível das atividades culturais da cidade. O museu dará para um jardim suspenso, de grande beleza, seu complemento natural, com vista para a praça.”

Excertos do material de lançamento do empreendimento
Conjunto Governador Kubitschek – Arquitetura e Engenharia, 1953

Diante da dimensão da obra e do custo das técnicas necessárias à sua concretização, uma após a outra, construtoras vão à bancarrota tentando levar a cabo a tarefa de edificá-lo. A construção é interrompida diversas vezes, por longos períodos. Torna-se uma ruína no meio da cidade, com o agravante de sua desproporção diante da Belo Horizonte de então. Um lugar maldito antes mesmo de ser habitado.

Pensado à luz do desenvolvimentismo dos anos 50, as primeiras unidades começam a ser entregues apenas na década de 70, em meio a um regime militar ditatorial. Visando o controle social, os usos culturais previstos são suprimidos e outros bem mais prosaicos ocupam seu lugar. Na última década, uma reforma física começa pouco a pouco a ser feita, mas os usos se mantêm os mesmos do período militar. Principal marco urbano de Belo Horizonte, o Conjunto JK sofre, ainda hoje, o estigma e as conseqüências de sua história.

Convicto da necessidade de uma postura ativa do arquiteto-urbanista diante da cidade, venho trabalhando de forma autônoma em um projeto cujo objetivo é a requalificação do Conjunto JK. Experiências recentes mostram a eficácia deste perfil de empreendimentos na criação de espaços humanamente ricos, no oferecimento de espaços de lazer e cultura para a população e no retorno aos capitais ali empregados. O Projeto de Requalificação do Conjunto JK tem seu foco na adequação ou substituição dos usos das áreas públicas e semipúblicas do complexo, este que se apresenta hoje em BH como o maior potencial não aproveitado de criação de áreas de lazer e cultura para a população. As ações propostas neste projeto são centradas basicamente em três aspectos principais: resgate da integridade física e estética do conjunto; estabelecimento de sustentabilidade econômica e ambiental; resgate do seu caráter público e cultural.

Uma conjunção feliz de fatores em curso vem tornar este projeto mais viável agora do que nunca. A aprovação da reforma da praça Raul Soares no orçamento participativo e o plano de revitalização da área do Mercado Central, por exemplo, tornam a Requalificação do JK continuidade natural destas ações. Conforme a máxima do urbanismo internacional, é uma busca de se pensar de forma global, agindo localmente.

Artigo publicado no jornal Hoje em Dia em 19 de novembro de 2007

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