Revestimento, arquitetura, design ou arte?
Presente na arquitetura brasileira desde as suas mais remotas realizações, a azulejaria tem seu primeiro registro no Brasil no Convento de Santo Amaro de Água-Fria, em Olinda, Pernambuco. Durante a segunda metade do século XVII, ao intensificar-se a construção de templos, sobrados, engenhos e palácios, a presença de azulejos nas construções passa a ser mais regra do que exceção. De uso primordialmente decorativo e sempre trazidos de Portugal, os azulejos continuam chegando ao Brasil ao longo dos séculos XVIII e XIX, sendo usados na decoração de igrejas e posteriormente na proteção das fachadas de edifícios urbanos. Observa-se aí uma inversão de influências, pois tal utilização não havia ainda sido observada na metrópole. Após a abertura dos portos, começam a chegar também azulejos vindos da Holanda, França e outros países da Europa. A fabricação local é observada a partir de meados do século XIX, mas somente no início do século XX a produção brasileira começa a adquirir alguma regularidade.
Mesmo com a fabricação regular, até 1973 a bitola de 15×15 centímetros era a única fabricada no Brasil, fator definidor de sua consolidação como formato padrão na azulejaria nacional até pouco tempo atrás. De uso inicialmente decorativo, o azulejo passa a se firmar na construção brasileira, conjuntamente com o ladrilho hidráulico, como elementos básicos de revestimento de áreas molhadas na maioria das construções da primeira metade do século XX. Liso ou decorado, tal onipresença atribui ao azulejo simbologia e significado, tornando-o elemento de identidade da cultura nacional e presença no imaginário coletivo brasileiro. Pelas mãos de Athos Bulcão, desenhista e pintor brilhante, o azulejo toma as ruas de Brasília e, ornado de elementos geométricos coloridos e combinações randômicas, forma magníficos painéis que se tornam pano de fundo para o cotidiano da capital nacional e sinônimo da azulejaria brasileira. Athos veio, nas palavras de Danilo Matoso, sinalizar com seu trabalho de artífice que qualquer material, tratado com compreensão, torna-se arte.
Nos anos 80, a inserção nos elementos cerâmicos de padrões decorativos “clássicos” de gosto duvidoso, já industrializados e com bitolas variadas, é em parte responsável por desvirtuar a cultura da azulejaria de visual leve, porém austero que vinha se desenvolvendo no Brasil. Na década de 90 as juntas se alargam, os 15×15 dão lugar aos 10×10, que vêm revestir edifícios de cima a baixo, fazendo de nossas cidades imensos banheiros invertidos. Não há mais junta-seca, não há mais azulejos. Nosso dileto amigo agora se chama “revestimento cerâmico”, mimetiza mármores finos e é chamado vulgarmente de “piso”. Tudo é “piso”. E, por muito pouco, toda uma fatia de nossa cultura construtiva não vai para o buraco.
Tratando dos conceitos da azulejaria contemporânea, o artista e azulejista Alexandre Mancini nos propõe pensar a extrapolação do limite físico da superfície original do azulejo, identificado no modo com que diferentes profissionais utilizam a azulejaria como fonte de inspiração ou referência (como as artistas Susana Bastos ou Adriana Varejão), ou mesmo como suporte para sua arte, como ele mesmo vem fazendo. Dentro deste último viés, identificamos na história da arquitetura brasileira duas abordagens, se não opostas, distintas. De um lado, temos como exemplo os painéis de Portinari para o edifício do Ministério da Educação no centro do Rio de Janeiro ou para a igrejinha da Pampulha. Ali o azulejo adquire certa “feição portuguesa” pelos tons utilizados pelo artista, mas comparece apenas na função de suporte perene para um grande painel artístico. De outro, temos a abordagem de Alexandre Mancini e do mestre Athos Bulcão, onde a modulação e repetição impostas pelas peças dão força e constituem a obra mesma, incorporando ao processo a lógica de assentamento do revestimento pelo pedreiro. O que une estas duas formas de lidar com o suporte é justamente a perenidade oferecida pelo processo de queima da peça e sua conseqüente possibilidade de instalação no espaço público.
Giulio Carlo Argan, em seu livro “A história da arte como história da cidade”, vem nos lembrar das palavras de Lewis Mumford: “A cidade favorece a arte, é a própria arte”, ou seja, ela não é um invólucro ou concentração de produtos artísticos, mas um produto artístico ela mesma. A cidade real, “reflete as dificuldades do fazer a arte, ao mesmo tempo em que reflete também as circunstâncias contraditórias em que ela se faz.” As diferentes formas de arte constituem um sistema em que, todas juntas, tornam a cidade o campo de concentração cultural onde “tudo se tenta, tudo se faz”. No mesmo livro, em texto de 1979, Argan já vinha identificando um caminho da arte (ou crise, como ele denomina) que hoje se torna mais claro que nunca. Ele diz que os produtos das artes se inserem num contexto cultural contemporâneo dominado pela ciência e pela tecnologia a ponto de terem de ser sustentados por uma “ciência da arte”, que na realidade é o que se tornou a história da arte. Assim, observa-se que a fruição da arte, até então imediata, torna-se mediada de maneira “científica” pelas teorias acadêmicas, criando uma dificuldade objetiva de inserção de uma cultura essencialmente artística com o meio científico e tecnológico estabelecido. A inquietação de Argan reside nas perdas relevantes e talvez irremediáveis que tal situação poderia acarretar naquilo que chamamos patrimônio artístico.
Por outro lado, enquanto a arte assim se desenrola, um grande contingente de “desenhistas”, “ilustradores” e “grafiteiros” produzem silenciosamente sua arte, sensível e intrinsecamente ligada ao contexto urbano, com espontaneidade muito mais próxima da pintura mural (uma das mais antigas formas de expressão artística) do que das artes acadêmicas. Desenvolvem-se de modo relativamente independente desta e mantém ainda um pouco do imediatismo perdido por ela. Em conversas recentes com artistas como Alexandre Mancini e Xerel Alcântara, vimos buscando identificar situações que possam unir a arte urbana com a azulejaria contemporânea no espaço público. A idéia passa pela discussão em curso sobre as possibilidades e distorções a que a arte urbana é submetida quando da sua transposição para o espaço de uma galeria por um lado e por outro, de sua possibilidade de permanência no contexto urbano através da azulejaria. Seria este um modo de evitar o que Argan, em situação bem distinta, chamou de “diáspora da obra de arte”, quando não só o ambiente de onde ela é retirada se descaracteriza, mas também a própria obra? Naquele caso ele se referia às obras da antiguidade clássica e não à arte urbana, mas embora eu ainda não tenha conclusões concretas sobre essas possibilidades, algo aí me parece fazer sentido.
Artigo publicado no jornal Hoje em Dia em 14 de dezembro de 2008
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